TJBA - DIÁRIO DA JUSTIÇA ELETRÔNICO - Nº 3.154 - Disponibilização: terça-feira, 9 de agosto de 2022
Cad 2/ Página 5724
A parte autora pensou ter celebrado um contrato de empréstimo consignado como outro qualquer. Jamais imaginaria ter contraído uma dívida no cartão de crédito verdadeiramente interminável. Isso porque não há limitação no número de parcelas, sequer
a definição estrita da taxa de juros aplicadas ou do valor global da contratação. O empréstimo ora questionado foi contratado
pela parte Autora no dia 04/02/2017. Desde então, já foram pagas 63 (sessenta e três) parcelas, totalizando o montante de R$
3.817,80 (três mil oitocentos e dezessete reais e oitenta centavos). Ressalta-se que este somatório corresponde apenas ao pagamento de juros. A partir dos números expostos acima, resta evidente que o valor descontado da folha, com passar do tempo,
já ultrapassou em diversas vezes o valor retirado. Assim, caso não seja cessada imediatamente essa cobrança absurda e indevida, a parte Ré irá enriquecer ilicitamente às custas do benefício previdenciário da parte Autora, até que esta venha a falecer.
Ressalte-se que, não há qualquer previsão para o fim dos descontos. Destarte, diante da conduta abusiva da Ré, a parte Autora
busca a tutela jurisdicional para que sejam sanadas as irregularidades apontadas, bem como, a condenação por danos morais,
no importe de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) reais.
Petição inicial acompanhada de documentos (ID 190525951).
Deferiu o benefício da gratuidade judicial (ID 191609937).
A Requerida, devidamente citada e intimada, apresentou contestação sob o ID 199376474, alegando, preliminarmente, prescrição e decadência. No mérito, defende que as partes firmaram termo de adesão cartão de crédito consignado e autorização
para desconto em folha de pagamento, sendo válido o contrato celebrado. Argumenta, ainda, a inexistência de ilicitude e a culpa
exclusiva do consumidor. Impugna as indenizações pleiteadas na inicial.
Intimada, a Autora apresentou réplica (ID 199728639).
Vieram os autos conclusos para os fins de direito.
É o breve relatório.
Fundamento e decido.
Trata-se de ação em que a Autora alega ter firmado contrato de empréstimo consignado junto ao Banco requerido, mas que
este impôs a contratação de um cartão de crédito com reserva de margem consignável, o qual aduz não ter pactuado e não ter
recebido na sua residência.
Controvérsia cinge-se em saber qual a modalidade de empréstimo consignado a Autora contratou junto à financeira Ré, tendo
em vista que a contratação em si é fato incontroverso.
Matéria predominantemente de Direito, feito já instruído com prova pertinente e, sem relevo outras para o deslinde da demanda,
o julgamento imediato é de rigor (art. 355, I, CPC).
Passo a analisar as preliminares ventiladas.
Passando as questões prejudiciais ao mérito, não há que se reconhecer a ocorrência de decadência, nem mesmo de prescrição.
Afasta-se a preliminar de mérito de prescrição, eis que se trata de nulidade absoluta, modalidade de nulidade incompatível com
a prescrição.
Tampouco ocorreu decadência, uma vez que a parte autora pretende o reconhecimento da nulidade do contrato, não sendo
aplicável os prazos previstos no artigo 178 do Código Civil.
NO MÉRITO
Pois bem.
Diante do conjunto probatório carreado aos autos, a procedência do pedido é de rigor. Vejamos:
De início, necessário aplicar à hipótese as regras do Código de Defesa do Consumidor porque a relação jurídica de direito material versada nos autos envolve o consumidor (artigo 2º do CDC) e o fornecedor de bens e serviços (artigo 3º do CDC). Ademais,
é pacífico o entendimento de que as instituições financeiras se submetem às normas consumeristas.
A análise da prova revela que a Ré simulou a celebração de um contrato de cartão de crédito com o velado intuito de aplicar juros
extorsivos, muito superiores aos aplicados nos contratos de mútuo consignado, nos quais geralmente as taxas não ultrapassam
a taxa de 2% ao mês, quando não inferiores a 1% ao mês.
Apesar do esforço intelectivo da Ré, ela não conseguiu convencer o juízo de que realmente celebrou com a parte Autora um
contrato de cartão de crédito, sequer se dignando de juntar aos autos cópia do suposto “plástico” remetido à parte autora, objeto
que retrataria sobremaneira a existência do alegado contrato.
A Ré jamais expediu e emitiu para a parte Autora qualquer cartão de crédito, pois é uma instituição bancária e não tem entre
seus objetivos societários a função de operar cartão de crédito, atividade que é restrita às operadoras de cartão de crédito, que
também compões o sistema financeiro nacional, mas não podem emprestar dinheiro.
Gize-se mais uma vez que as operadoras de cartão de crédito não emprestam dinheiro aos seus clientes, tanto é que captam
junto ao sistema bancários empréstimos para cobrir os saques em dinheiro realizados pelos clientes, realidade usada por elas
para justificar os altíssimos juros cobrados nas dívidas de cartões de crédito.
Uma prova cabal de que não houve emissão de cartão de crédito e nem uso dele pela parte demandante é que o suposto saque
não foi realmente um saque, mas sim uma transferência eletrônica da ré para a conta da parte autora, o que sepulta de vez a
tese de que houve um saque mediante uso de um plástico, de um cartão de crédito.
Mais grave do que a simulação de um contrato de cartão de crédito é o fato de a Demandada ter descontado do benefício da
parte Autora apenas o valor mínimo para pagamento, fazendo emergir uma dívida infindável e impondo a incidência de juros em
percentual altíssimo de mais de 6% ao mês, fato retratado nas falsas faturas, as quais fazem alusão ao uso do crédito rotativo e
do pagamento mínimo do débito do simulacro de cartão de crédito.
Agindo da forma acima inferida, a Ré auferiu lucros abusos, pois impôs desnecessariamente à parte autora o pagamento de juros
de crédito rotativo e a distensão de uma dívida por prazo desarrazoado, apesar de ser uma operação de baixíssimo risco, eis que
garantida por desconto no benefícios previdenciário.
A conduta da Ré feriu a boa-fé objetiva, porquanto não se espera de uma instituição bancária uma simulação de contrato, tampouco a aplicação de juros de uso de crédito rotativo quando havia possibilidade de solução menor onerosa, muito menos a
invasão indevida no campo de atuação das operadoras de cartão de crédito.